sexta-feira, 25 de março de 2011

A arte de fotografar o que não se vê, com Boris Kossoy

Muita gente por aqui já deve ter ouvido falar no grande pensador fotográfico Boris Kossoy, já publiquei algumas coisas dele por aqui. A maioria das pessoas conhecem bem suas reflexões e bons livros sobre fotografia, mas quase ninguém conhece o lado fotógrafo de Boris Kossoy. Recentemente o jornal O Globo publicou uma entrevista bacana que o jornalistaCarlos Albuquerque realizou com Boris. Eles falam sobre as novas tecnologias, a vida de fotógrafo e o novo livro, recentemente lançado: Boris Kossoy: fotógrafo. Confiram na íntegra…
No seu site, há uma foto de 1955, em que aparece um suposto disco voador. A partir de quando a ficção passou a fazer parte do seu trabalho como fotografo?
Desde o início. Quando “produzi” esta foto tinha 14 anos de idade. A fotografia ainda não era o meu principal interesse, nessa altura estava muito mais próximo do desenho. Por volta de 1965, entretanto, quando terminava a faculdade de arquitetura, a fotografia já fazia parte das minhas predileções artísticas e profissionais. E o caminho do realismo fantástico era absolutamente natural para mim.

Como os quadrinhos e influenciaram o seu trabalho?
As HQ me ensinaram que cada quadro é um quadro, um “fotograma” que deve comunicar individualmente; uma cena que, embora elo de um encadeamento, fragmento de uma história, deve possuir autonomia suficiente do ponto de vista estético. Eu comprava os gibis dos mais diferentes assuntos – Homem Submarino, Mandrake, O Fantasma, Capitão Marvel, Capitão América, Tarzan, Flash Gordon, Batman e Robin – conforme o alcance da minha mesada e os colecionava cuidadosamente. Ficava fascinado com os belos desenhos de artistas como Alex Raymond, criador de Flash Gordon e Lee Falk, criador do Fantasma, entre outros mestres. Impressionavam-me os jogos de luz e sombra e as cores saturadas, da mesma forma me encantavam os códigos e as convenções dos quadrinhos, com que logo nos habituávamos. Quando se tratavam de histórias em quadrinhos seriadas (como as que se vendiam semanalmente nas bancas, em formato de tiras), lembro-me que aguardava com grande ansiedade o próximo número para acompanhar o seu desfecho e as novos perigos que ameaçavam os “mocinhos”.

De que forma o senhor encarava o surrealismo? Era uma influência ou um ponto de partida para o desenvolvimento de um estilo próprio?
No princípio eu deslizava entre o surrealismo e a arte fantástica. Tive Fernando Odriozola como professor no Instituto de Arte Contemporânea da Fundação Armando Álvares Penteado, creio que entre 1958 e 1960. Sua influência nos meus desenhos foi decisiva. Quando me centrei na fotografia, a partir do meu próprio trabalho profissional, descobri que era o meio que buscava – e que desde há muito flertava – para transmitir a ideia de um universo mágico paralelo à realidade imediata.

Qual a importância do Grupo Photo Galeria na afirmação da fotografia como meio de expressão no Brasil?
Penso que foi decisiva, pois conseguir reunir fotógrafos de imprensa, moda, indústria, arquitetura, além de fotógrafos amadores numa mesma sala para discutir a fotografia como forma de expressão artística, isto no ano de 1972-1973 e, pretender criar no ambiente insípido de então um “mercado” para a fotografia como expressão artística foi uma empreitada muito complexa. Fotógrafos do Rio de Janeiro e São Paulo principalmente, a maioria deles não se conheciam, num país em que a fotografia não passava de uma “técnica” utilitária, isso foi, de fato um fenômeno único na história contemporânea da fotografia no Brasil. Pessoas como George Racz, Armando Rozario, entre muitos outros tiveram muita determinação para levar a proposta adiante. Nosso projeto era o de criar um mercado para a aquisição da fotografia como objeto de arte, uma proposta que tinha um fim educativo de demonstrar a importância da fotografia como forma de expressão. Hoje, são raros os fotógrafos que ouviram falar do grupo Photo-Galeria, que deixou marcas na fotografia brasileira pensada como manifestação autoral.

Como o senhor, que prima pelas imagens fantásticas, lida com o lado documental da fotografia? É possível um registro objetivo da realidade?
Muito simples: busco captar na concretude da realidade imediata elementos que possam trazer um dado de mistério à cena. Procuro indícios pouco perceptíveis no conjunto de informações que compõem o cenário. Pesquiso detalhes que, em geral, passam despercebidos, esquadrinho, enfim, situações que escapam de padrões. O “lado documental” da fotografia é pleno de interrogações e jogos de aparências em conformidade com o olhar e a visão de mundo do fotógrafo. Portanto, primeiro, sempre tentei captar no “meu” documental algo que o ultrapassa; é o que eu tenho buscado nos últimos quarenta anos. Segundo, não existe um registro objetivo da realidade, o que existe são apenas registros… Todo registro é obtido a partir de um complexo processo de criação/construção do fotógrafo; portanto, trata-se de uma elaboração que tem o ficcional como componente constituinte – por natureza. A fotografia sempre se presta – ou é planejada – a atender determinados usos. Daí não ser um registro objetivo da realidade e, sim, suporte de um processo de construção de realidades: ficções documentais.

A crescente popularização da fotografia, através das máquinas digitais, e a força de redes sociais, como o Flickr, democratizam a arte de fotografar. Elas facilitam também o surgimento de novos talentos? E como descobri-los em meio a tanta produção e a essa verdadeira compulsão pelo registro fotográfico?
Os talentos de ontem, quase sem meios de mostrarem suas produções acabaram sendo descobertos, na música, no cinema, na fotografia, na literatura. Não penso que hoje seja diferente; se, no passado, quase não havia canais para a apresentação e eventual escoamento da obra, hoje, com toda a visibilidade, a dificuldade de se descobrir novos talentos de verdade é enorme, porque também falamos de uma produção enorme. Mas devemos saber separar os apertadores de botões dos fotógrafos. É claro que, ontem, como hoje, além do talento propriamente dito, são necessários vários outros ingredientes: atrevimento, paciência e uma boa dose de sorte no sentido de mostrar o conjunto da obra para quem entende, para quem é sensível, para quem é honesto, para quem, enfim, percebe que está diante de um talento a ser lapidado.

O senhor acredita que, se fosse lançado hoje, o seu livro Viagem pelo fantástico causaria menos estranhamento na comunidade fotográfica brasileira e no mercado editorial do que na época do seu lançamento, em 1971?
A questão é cultural e ideológica. Quando a discussão é centrada na fotografia a questão é ainda mais complexa. Toda obra que desafiava certos limites – morais, estéticos, políticos – causava espanto e desconfiança nas mentes conservadoras à direita e na turma do patrulhamento, à esquerda. Se, pensarmos em 1971, há um aspecto de base que deve ser considerado: em primeiro lugar, era “fora do comum” algum tipo de trabalho que não estivesse ligado a uma finalidade utilitária, como o jornalismo, a publicidade etc. Em segundo lugar, a simples idéia de um ensaio autoral em forma de livro, que não apresentasse códigos claros de enunciação como a natureza, o homem, as vistas de cidades, o futebol, as imagens do turismo etc., só poderia causar estranhamento.

Qual a importância da publicação do novo livro?
A importância desse livro reside na sua concepção. Não se trata apenas de um livro contendo uma seleção de imagens em torno de um tema, ou as melhores imagens do autor, ou as diferentes fases no sentido cronológico. O livro vai além à medida que contém o pensamento do autor acerca da Fotografia e da sua própria fotografia. Abrange a possibilidade de percorrer linhas de forças pelos textos, entrevistas, cronologia e bibliografia e, naturalmente, pela edição de imagens, que sugerem primeiro, a persistência de um olhar para o mundo exterior e interior, que, creio, tem perdurado ao longo de minha trajetória; e, segundo, a condição de estabelecer, por meio dessa estrutura, as amarrações entre a minha obra fotográfica e a minha obra teórica. Um embate, pois dos dois lados da trincheira; a prática visual e um exercício intelectual que se retroalimenta continuamente. E tem sido assim, desde que comecei a me interessar pelas imagens. Meu trabalho fotográfico sempre circulou, muito além da academia. O que me satisfaz nesse livro é a possibilidade de conjugar, entre textos e imagens, chaves para a fruição da obra como um todo.

Se o senhor começasse hoje – entre máquinas digitais, internet e outras redes sociais – acha que sua trajetória seria diferente? Seu modo de expressão seria facilitado pela tecnologia e a internet?
Minha trajetória seria diferente porque eu não seria quem eu sou, não importando em nada as facilidades da internet ou a evolução das “novas tecnologias”. Se eu começasse hoje tudo seria diferente: minha visão do mundo, minha formação, meu repertório, minha história. Se eu começasse hoje estaria voltando ao passado… É um exercício interessante, de qualquer modo, o se não faz parte da história.


Fonte: Fôs Grafê

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